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Diário do capitão, data estelar 59673

  • Foto do escritor: kylquintela
    kylquintela
  • 4 de abr. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 6 de abr. de 2022


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Wendy é uma jovem autista que vive em uma residência terapêutica com seu cachorro Pete e tem um (ótimo gosto) interesse especial em Star Trek. Na residência, ela aprende a desenvolver habilidades importantíssimas para sua independência e sobrevivência, enquanto trabalha em uma franquia de rolinhos de canela. Decidida a participar de um concurso de roteiro de Star Trek, Wendy parte em sua própria jornada para os Estúdios Paramount, para entregar sua produção de mais de 400 páginas. A aventura leva sua terapeuta e sua irmã a pegarem a estrada na expectativa de encontrá-la em segurança. Tudo que quero (Please, stand by) é uma das poucas produções cinematográficas cujo protagonista é uma garota autista (a maioria dos filmes e séries sobre o tema foca em meninos autistas, quase validando o estereótipo de que autismo é uma condição praticamente exclusiva de meninos). O filme é belíssimo e nele vemos a jovem, que no seu cotidiano é impedida de atravessar uma avenida mais larga, partir sozinha em uma viagem de cerca de quatro horas, para realizar seu sonho. E um pouco de tudo acontece durante o percurso, até um policial fluente em Klingon, que acolhe Wendy em Los Angeles (quem disse que aprender “Vulcan” não tem lá muita utilidade... ainda serei fluente no idioma). Se você chegou até aqui e tem interesse em compreender um pouco mais sobre autismo, continue a leitura (na sequência, falo sobre as diferenças de gênero no autismo) e assista ao filme! Qapla’!


Podemos afirmar que a crença de que meninas/mulheres autistas apresentam menor dificuldade para interação social que seus pares do sexo masculino é praticamente senso comum entre profissionais que atuam com autismo; essa é inclusive uma das principais hipóteses, juntamente ao “efeito de camuflagem”, para o fenômeno 4:1 no autismo (em que se verifica cerca de quatro vezes mais diagnósticos de autismo em homens do que em mulheres, estudos mais recentes apontam uma relação de 3:1). Muito dessa crença se deve a uma, de fato, observável discrepância entre esses dois grupos (especialmente nos casos de autismo nível 1 de suporte), mas também a uma teoria que não envelhece muito bem: a teoria do “cérebro extremamente masculino” de Baren-Cohen, que afirma que o cérebro masculino é essencialmente sistemático, enquanto o cérebro feminino é mais empático - parece fazer sentido, mas não se sustenta perante novas evidências.

Como era de se esperar, a literatura científica diverge acerca das diferenças entre autistas dos sexos masculino e feminino. Enquanto alguns estudos concluem que autistas do sexo masculino apresentam maior comprometimento social que os do sexo feminino, outros apontam que o contrário – meninas/mulheres apresentam maior comprometimento que meninos/homens e outros não identificam diferenças significativas entre os sexos. Supõe-se que isso se deva a diferenças metodológicas, talvez populacionais, mas o fato é que não há consenso na literatura do porquê esse fenômeno ocorre.

Um estudo de 2018 com cerca de 3500 crianças entre 8 e 10 anos de idade, com e sem diagnóstico de autismo apontou dois achados interessantes: não identificaram o “efeito camuflagem” feminino na sua amostra e os seus dados não validam as teorias pré-existentes que tentam justificar as diferenças na prevalência de TEA entre meninos e meninas (EVANS e cols., 2018). Um outro estudo de 2020, verificou, em uma amostra de 83 participantes, a presença do efeito de camuflagem mais acentuado em meninas autistas, embora também prevalente em meninos autista, e mais frequente em autistas de ambos os sexos com maiores resultados nos testes de QI (WOOD-DOWNIE e cols., 2020). Schuck e cols., 2019 estudaram a prevalência do efeito camuflagem em adultos autistas, a partir de uma amostra significativamente pequena, e obtiveram resultados semelhantes a outros que apontam a relevância desse efeito para a discrepância entre as prevalências de diagnóstico de autismo entre os sexos e as maiores chances de mulheres serem equivocadamente não diagnosticadas com autismo e/ou diagnosticadas mais tardiamente que os homens. Adicionalmente, o estudo corrobora com outros achados que verificam uma prevalência semelhantes de sinais e sintomas associados ao autismo entre homens e mulheres, apesar da influência da “camuflagem”, particularmente nos casos em que não há atraso na linguagem, nem déficits cognitivos. Além do mais, os autores sugerem como uma provável causa para o fato de se observarem mais meninas camuflando os traços autistas às demandas sociais que a sociedade impõe às mulheres desde muito cedo.

Fato é que ainda há muito a se pesquisar em relação ao autismo e suas peculiaridades, mas precisamos estar atentos às sutilezas de cada indivíduo para minimizarmos as possibilidades de erro de diagnóstico. O diagnóstico precoce do autismo e o acesso a intervenções terapêuticas eficazes são cruciais para o melhor desenvolvimento e melhor qualidade de vida dos autistas.


E para você que chegou até aqui, dif-tor heh smusma (vida longa e próspera) 🖖🏻.


Referências


Evans, S. C., Boan, A. D., Bradley, C., & Carpenter, L. A. (2018). Sex/Gender Differences in Screening for Autism Spectrum Disorder: Implications for Evidence-Based Assessment. Journal of Clinical Child & Adolescent Psychology, 1–15. doi:10.1080/15374416.2018.1437734


Schuck, R. K., Flores, R. E., & Fung, L. K. (2019). Brief Report: Sex/Gender Differences in Symptomology and Camouflaging in Adults with Autism Spectrum Disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders. doi:10.1007/s10803-019-03998-y


Wood-Downie, H., Wong, B., Kovshoff, H., Mandy, W., Hull, L., & Hadwin, J. A. (2020). Sex/Gender Differences in Camouflaging in Children and Adolescents with Autism. Journal of Autism and Developmental Disorders. doi:10.1007/s10803-020-04615-z


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